Simulando o drama da vida real


Ser diferente não é fácil
Em uma primeira impressão, Jodie Holmes poderia ser apenas mais uma garota normal, de jeito retraído e olhar levemente triste e profundo. No entanto, ainda que por vezes desejasse uma vida normal, Jodie sempre esteve fadada a jamais ser como as outras garotas, graças à sorte, ou ao azar, de ter nascido dotada de capacidades mediúnicas de nível muito elevado. Desde o nascimento, Jodie sempre atraiu olhares de inveja, medo, curiosidade e ganância por onde quer que passasse, olhares que vinham tanto do mundo real quanto do plano espiritual – chamado, no jogo, de Infraworld. Tal característica singular dificultou muito seu dia-a-dia e quase destruiu sua vida por completo.Além de ser dotada da capacidade de entrar em contato direto com o Infraworld, desde pequena Jodie também sempre se viu ligada, literalmente, a uma entidade espiritual que ela passou a chamar de Aiden. Jodie e Aiden nem sempre se dão bem, mas é graças a essa ligação incomum que a garota encontra algum conforto e compreensão ao longo de quase todos os momentos difíceis de sua vida. Também é graças à proteção desse espírito que Jodie sempre pôde se defender, pelo menos parcialmente, da ameaça de entidades e de humanos mal-intencionados, que, por vezes, irracionalmente buscam machucar a garota que pode ver o que a maioria das pessoas não consegue ver.

A maioria dos que têm contato com Jodie ou a discriminam por ser diferente (repelindo-a do convívio social) ou buscam obter o controle de seus poderes paranormais. Poucos são os que realmente a enxergam sem nenhum sentimento negativo e perigoso, e se aproximam com boas intenções, mas quando isso acontece, acabamos nos surpreendendo e nos emocionando com belíssimas cenas.
Evolução do drama interativo?
A proposta deste novo título segue basicamente o mesmo padrão de conceitos para dramas interativos que a Quantic Dream tem usado ao longo dos anos: o jogo tem por objetivo nos envolver emocionalmente com os conflitos dos personagens enquanto nos permite moldar o desenrolar dos fatos através de nossas decisões, que são refletidas no comportamento imediato dos protagonistas diante das mais variadas situações.
Em alguns raros momentos, nos sentimos tão passivos diante da ação que se desenrola na tela, que ficamos em dúvida sobre quem está no controle da personagem. Graças a isso, Beyond se define muito mais como um filme do que como um jogo, já que exige bem pouco de participação real e significativa do jogador na execução da maioria das ações. Isso é levado tão ao extremo, que se você deixar, em todas as partes envolvendo interação de quick-time events, o jogo pode, literalmente, “se jogar sozinho”.
Curiosamente, e diferente do que temos em Heavy Rain, as decisões que você tomar ao longo do jogo pouco interferem na forma como a história se encerra, pois, independente de como escolher agir ao longo de sua jornada, somente nos momentos finais da narrativa é que você poderá escolher um dentre todos os desfechos possíveis para a trama.
Mesmo com esses e outros detalhes problemáticos, o jogo possui um grau de imersão tão bom que é provável que você nem perceba muitas de suas imperfeições no decorrer de sua primeira jornada. Enquanto acaba se deixando levar pela aventura tão tematicamente variada e divertida, e se prende emocionalmente aos personagens, você pode, sem perceber, nem levar em consideração alguns pontos negativos que fazem cair a qualidade da obra como um todo. Alguns destes pontos dizem respeito à falta de foco e de profundidade na história, mas os principais estão intimamente ligados à jogabilidade.
Controlando os personagens e interagindo com o mundo
A complexidade das mecânicas de interatividade foi reduzida em comparação com o que temos em Heavy Rain, mas essa simplificação nos elementos de mecânica, paradoxalmente, não tornou a jogabilidade de Beyond mais simples, racional e intuitiva – algo que era um dos maiores objetivos da equipe de desenvolvimento. O jogo é fácil por não haver formas de você conseguir um “game over”, mas a execução de seu gameplay, ou seja, aquilo que define Beyond como algo que não é apenas um filme, mas sim um videogame, é cheia de pequenas falhas.No decorrer da aventura controlamos Jodie (em suas várias fases da vida) e Aiden, a entidade que sempre a acompanha. Controlamos Jodie em terceira pessoa e Aiden em primeira. A forma como Jodie se movimenta é baseada no contexto da situação (o que algumas vezes é algo bastante limitador e travado), já controlar Aiden nos remete à impressão de estarmos no comando de uma câmera grua bastante flexível, que possui habilidades de possessão e telecinesia, mas que é limitada pela extensão de um brilhante cordão de cor índigo que se liga ao peito de Jodie. Estranhamente, a extensão desse cordão não é algo definido, e varia drasticamente de acordo com as necessidades da narrativa.

Já as seções de combate, que são todas baseadas em um novo sistema de quick-time events, são mais do que frequentemente mal executadas. Este problema pode até ser parcialmente mascarado com o fato de que é impossível “perder” uma luta. Mas ainda assim, passar com sucesso por alguma parte do jogo sem conseguir decodificar direito o que o sistema de gameplay queria que fizéssemos acaba gerando em nós uma leve sensação de desconforto ou frustração.
Copo meio cheio ou meio vazio?
Beyond: Two Souls com certeza foi o jogo que mais esperei para o ano de 2013. Não apenas porque admiro a linha de trabalho escolhida por David Cage, que casa a arte dramática-emocional do cinema com o magnífico potencial de interatividade dos videogames, mas também porque realmente cultivei grandes expectativas com o que poderia ser um enorme salto de evolução depois do que pudemos ver em Heavy Rain.![]() |
O trabalho de modelagem, texturização e animação em tempo real é incrível. |
As técnicas refinadas de captura de movimento, texturização, animação e modelagem 3D, de fato criaram resultados gráficos belíssimos – mas isso graças também à ótima atuação de Ellen Page e Willem Dafoe. Contudo, o fracasso na tentativa de evoluir alguns dos conceitos de mecânica utilizados em Heavy Rain acabou piorando o que já era aceitável sem melhorar o que realmente precisava de melhoras (como é o caso dos sistemas de câmeras e de movimentação de personagens). Porém, o título ainda consegue se definir como uma experiência fantástica para os fãs de dramas interativos, como eu. Mas essa experiência é maculada por falhas de design muito difíceis de serem ignoradas. Falhas que por vezes nos frustram e atrapalham o desenrolar de algo que poderia ser muito mais imersivo e coeso, e que talvez pudesse representar um casamento perfeito entre cinema e videogames.
Prós
- A atuação de Ellen Page e Willem Dafoe;
- Altíssimo nível de modelagem facial, animação e texturização;
- História imersiva e emocionante.
Contras
- Jogabilidade simplificada demais, travada e pouco intuitiva.
Beyond: Two Souls – PlayStation 3 – Nota: 8.0
Revisão: José Carlos Alves
Capa: Doug Fernandes
Nenhum comentário:
Postar um comentário